Adeus, Radio Nederland Wereldomroep!
Deixei a Radio Nederland há 10 anos, depois de ter trabalhado por 23 anos no Serviço Brasileiro. Vindo de experiências na BBC e na Radio Suíça Internacional, vivi o auge das ondas curtas, quando as frequências eram disputadas a tapa em Genebra e as rádios Moscou e Voz da América davam-se ao luxo de utilizar algumas delas só para produzir ruído e atrapalhar a recepção da concorrente.Por Tarcísio Lage*
Nascidas na era colonial, aproveitadas por ambos os lados durante a Segunda Guerra, as ondas curtas foram uma arma das mais importantes no decorrer da guerra fria. Ainda davam as cartas quando ruiu o Muro de Berlim em 1989 e a União Soviética capengava para seu fim no início da nova década.
A Holanda, sabemos, foi um dos primeiros países a utilizar as ondas curtas, em
1927, em transmissão direcionada à Indonésia. A primeira transmissão
transoceânica é atribuída à emissora estadunidense KDKA, de Nova Iorque para
Londres, em 1923.
Hoje, enquanto escrevo este artigo, tenho ao meu lado um smartphone com o qual
posso ouvir, em som nítido e claro, emissoras de rádio emitindo de quase
qualquer parte do planeta. E até mesmo sintonizar alguns canais de televisão.
Definitivamente, as ondas curtas, que contribuíram muito para a crescente
globalização, acabaram atropeladas pelas novas tecnologias. Mesmo assim, muitos
países ainda guardam suas frequências, como reserva, em caso de guerra ou
catástrofe, que possa destruir as redes de satélites e os cabos submarinos. Mas
isso é outra história. Cruzamos os dedos para que não aconteça.
Rádio como instrumento de propagandaO que podemos perguntar é se esse evidente
ocaso das ondas curtas e o advento da internet têm a ver com o brusco corte das
transmissões da Radio Nederland, com o encerramento de serviços como o Holandês
e o Brasileiro. Entendo que a resposta é não.
O corte dos serviços da Radio Nederland foi uma decisão política errada devido
à incapacidade de enxergar os benefícios de estar na linha de frente na batalha
que se trava no ciberespaço.
Sabemos muito bem da existência de um refrigerante de cor escura,
comprovadamente prejudicial à saúde, mas que é campeão de venda em todo o mundo
porque está sempre utilizando todos os meios de divulgação disponíveis. Vale
aqui o velho refrão: a propaganda é a alma do negócio.
Serve também para países. A Holanda está, simplesmente, abrindo mão de um
valioso instrumento de propaganda, de marcar presença no mundo inteiro,
utilizando profissionais competentes para falar a linguagem certa entendida em
cada região do mundo.
A BBC, a Rádio França e a Deutsche Velle estão fazendo isso. Souberam imigrar
do chiado das ondas curtas para a selva da blogosfera sem perder de vista o
objetivo principal: disputar o mercado da informação e sempre que possível
puxando a sardinha para seu lado, quer dizer, marcando a presença de seus
países no cenário internacional.
Discurso camufladoA meu ver, o discurso oficial da Radio Nederland nunca foi
realista, camuflando seus reais objetivos. Agora, por exemplo, o Departamento
Latino Americano vai ser reduzido a escrever e divulgar informações para salvar
Cuba e Venezuela de governos considerados tirânicos.
A Holanda posando de bom samaritano, enquanto a Grã-Bretanha, a França e a
Alemanha preferem reforçar presença em países como o Brasil e tirar proveito do
boom econômico por que estão passando. O golpe quase de morte contra a Radio
Nederland foi dado por um governo que era influenciado pelo PVV, partido da
ultradireita isolacionista de Geert Wilders, sem levar em conta os benefícios
econômicos e políticos ao manter ativa a emissora.
Primeira reorganizaçãoNo entanto, o processo de não adaptação da Radio
Nederland aos novos tempos começou em 1994, durante a primeira reorganização,
quando a internet ensaiava seus primeiros passos. Para se livrar de alguns
problemas administrativos e economizar, foram cortados vários serviços,
incluindo o brasileiro, que só voltou a funcionar dois anos mais tarde.
O erro maior foi ter cortado, na época, o Serviço Árabe, com o potencial de
atingir 400 milhões de pessoas e na região que era – e é – o foco de atenções
do mundo inteiro. Do mesmo modo que sucedeu nas reorganizações posteriores,
faltou sempre exprimir, sem subterfúgios o objetivo principal da emissora:
fazer propaganda da Holanda, de seu potencial econômico. O resto – mesmo expresso
com belas palavras – é complemento.
Rádio Canadá: pior exemploIsso pode parecer simplista, mas é uma tarefa muito
difícil em que a BBC é mestra e a Radio Canadá, se me permite, foi o pior
exemplo que vi. Em 1986 trabalhei durante dois meses em Montreal num
intercâmbio entre a Radio Nederland e a Radio Canadá. E lá fiquei estarrecido
em saber que só podiam ser divulgadas notícias que tivessem uma relação direita
com o Canadá e, mais chocante ainda, as músicas utilizadas tinham de ser
canadenses ou, pelo menos, oriundas de discos prensados no país.
Na época, às sextas-feiras, fazia um resumo da semana que era transmitido
sábado pela manhã. Foi na noite de uma dessas sextas-feiras que assassinaram na
Suécia o primeiro ministro Olof Palme. Não tive dúvidas. Fui pela manhã à
emissora e com muito custo consegui mudar o programa. Na segunda-feira fui
criticado pelos colegas e a chefia: afinal Olof Palma não tinha nada a ver com
o Canadá.
Em contrapartida, no início dos anos 70 do século passado, trabalhei como redator
na BBC. Os ingleses não tinham nada de canadense e não eram nada ingênuos. O
programa diário era, se não me falha a memória, de 2h15m, iniciando e
terminando com um noticiário e um comentário. Aí era sagrado: não se podia
mover uma vírgula, tradução ao pé da letra e não era sequer mudar a ordem das
notícias. No meio do programa – e isso era nada menos de uma hora e meia –
podíamos falar praticamente o que bem quiséssemos. E a BBC passava – como passa
ainda hoje – por uma emissora onde se pode dizer tudo, mas sem deixar de impor,
diariamente, sua opinião.
Radio Nederland: paraíso de liberdadeNa Radio Nederland – depois de ter passado
pela rigidez da Radio Suíça Internacional – encontrei um ambiente muito
parecido com o da BBC. Com uma vantagem para nós jornalistas: podíamos escolher
o noticiário e os comentários. Um paraíso de liberdade editorial.
Quando cheguei, no final de 1981, não se utilizavam nem roteiros. Íamos para o
estúdio com um colega ou um convidado para conversar, até o técnico dar o sinal
de que o tempo havia esgotado. Apesar de tender para o lado libertário,
batalhei para que fosse introduzido o roteiro a fim de aproveitar melhor o
curto espaço de 10 ou 15 minutos de cada programa.
O que interessa ressaltar é que a Radio Nederland – pelo menos no que se refere
ao Serviço Brasileiro – gozava de extrema liberdade e fazia concorrência com a
BBC na disputa de ouvintes de ondas curtas. E mesmo assim, nesse fausto
libertário, não deixava de servir muito bem aos interesses econômicos da
Holanda.
A era da internetNessa derrocada, em que o Serviço Brasileiro desaparece, vale
recordar alguns erros cometidos na era pré internet. Quando o Departamento foi
reaberto, em 1996, sabendo-se que as ondas curtas estavam irremediavelmente
condenadas, a RNW embarcou numa concorrência desigual com a BBC para conquistar
direito de retransmissão pelas grandes emissoras brasileiras.
Chegou a instalar uma enorme e custosa antena na Rádio Ministério da Educação e
outra para a rede de rádios católicas, enquanto a BBC ia abocanhando com
exclusividade as emissoras de grande porte.
Foi aí – quando a internet começa a demonstrar ser ridículo gastar tanto
dinheiro com antenas gigantescas – que o Serviço Brasileiro deixou de
aproveitar sua melhor oportunidade de sobrevivência. Ao lado das radio
oficiais, controladas pela Embratel, o Brasil possuía mais de cinco mil rádios
comunitárias, ávidas de preencher suas programações diárias.
Por medo de perder o mercado das rádios oficiais, já na época dominado
sobretudo pela BBC, o Serviço Brasileiro deixou de lado o filão das rádios
comunitárias. Não faço autocrítica porque na época fui contra tal abandono.
E aqui chegamos. O Serviço Brasileiro está fechando suas portas. A Radio
Nederland, como um todo, sendo reduzida a um núcleo com menos de um quarto de
seus funcionários. A emissora que foi tão bem na nau das ondas curtas perdeu a
nave para a batalha no ciberespaço.
* Tarcisio Lage – Ex Coordenador do Serviço Brasileiro da Radio Nederland
RNW: Adeus à estação de retransmissão Bonaire!